sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Retratos de um colorido que entrou em extinção

Arte cobiçada no século passado foi esquecida e não existe mais. Mas artista supera passado, reconstrói-se e permanece imune ao tempo.


Por Carolina Sotero

Foi em meados da década de 50 que o Brasil conheceu a possibilidade de ver a vida mais colorida. Antes disso, o sonho de ter uma fotografia em cores era coisa só de gente rica. Mas quem não queria ter sua imagem estampada em um papel, digna de ser guardada? Foi só com o surgimento do negativo que o retrato conseguiu ficar mais barato e ganhar espaço nas paredes dos brasileiros. Embora fosse muita coisa captar cenas e eternizar pessoas, nessa época, a fotografia de baixo custo era só a preto e branco, tirada pela lambe-lambe. E foi exatamente nessa escassez de cor que alguns artistas, não se sabe exatamente aonde, muito habilidosos com os pincéis, experimentaram misturar pintura com fotografia. E descobriram, nessa união de artes distintas, um novo jeito de ganhar dinheiro.

O processo na época era simples. Após a cópia do negativo e a ampliação da foto, era gravado em um papel semelhante ao fotográfico apenas 30% da fotografia original. O resultado visível eram os contortos do rosto de uma pessoa, que depois eram ressaltados e pintados à mão com tinta. Os responsáveis por esse trabalho que democratizou a fotografia colorida no país, foram os “pintores de ampliação” ou “retocadores de foto”, como ainda são chamados. João Figueiredo de Lima foi um retocador no Recife do século passado. Na época em que as mocinhas passeavam na Aurora, o artista chegou a viajar quase todo o país colorindo fotografia. Pintava mais de 10 ampliações por dia e com esse trabalho sustentou, muito bem, a mulher e os oitos filhos. “Naquela época era muita encomenda, vários ateliês ofereciam esse serviço”, recorda o pintor que hoje conta 73 anos.

Como pintura não é coisa para qualquer um, Seu João explica que a vocação para as artes, no seu caso, começou cedo e não foi com o pincel. “Com uns três anos de idade eu e meu irmão íamos para o rio pegar barro e ali eu comecei sozinho a fazer boneco de argila”, conta o artista, que só aos 16 anos fez curso de pintura para se tornar profissional. O que não foi difícil. A desenvoltura com o desenho e a destreza das mãos fez logo o jovem menino do interior – nascido em Bezerros – ser chamado para trabalhar em um ateliê de retrato pintado. Acompanhado do esfuminho, tinta e pincel, Seu João passava o dia vendo gente que não conhecia. No balcão ou no cavalete estava diariamente o rosto de pessoas que ele nunca tinha visto. Gente sem cor, cheia de história que a cada pincelada, aumentava a expectativa de não ser esquecida. Atrás das fotos originais ou em algum papel anexado vinham os pedidos: “trocar a blusa por um paletó”, “acrescentar colar e brincos”, “colocar a mãe do lado da criança”. Coube aos retocadores, a arte de colorir pessoas. Até dar cara de gente rica em quem, no bolso, não tinha nada.

Depois de algum tempo trabalhando no ateliê dos outros, ele conseguiu abrir, na Rua da Imperatriz, o seu próprio ateliê. É ali que tem completado até hoje, 57 anos de um trabalho que, apesar de esquecido, fez história. O foto-retrato pintado foi um fenômeno que preservou a história de muita gente. Apesar de ser uma raridade achar no país alguém que ainda trabalhe com a técnica, não é tão raro encontrar os quadros com a arte. As pinturas e retoques de Seu João, por exemplo, hoje devem estar escondidos em cemitérios, velhas capelas de ex-votos, gavetas antigas. Outros ainda sobrevivem pendurados, quase caindo das paredes das casas de taipa sertão afora.

Mas o pintor não se entristece com ausência de clientes: “o que foi, passou, agora eu vivo o presente, não adianta ficar agarrado no passado, têm que viver o hoje”. Seu João, que quando era novo estudou filosofia entendeu que há talentos que futuro nenhum pode levar. Então não abandonou os pincéis, nem aposentou as tintas. Continua sendo artista plástico e pintando nas telas pessoas, ruas e natureza morta.

Depois da popularização da fotografia colorida, algumas pessoas ainda procuraram os retocadores para restaurar fotos antigas. Mas com a chegada do computador não teve jeito. A era digital revogou as cores desses velhos artistas. “Isso já foi o máximo, hoje é brega, quase ninguém quer mais”, explica Seu João, que mal lembra o dia em que recebeu a última encomenda, “uns 6 ou 7 anos atrás”.

O que Seu João demorava, no máximo, duas horas para fazer, uma máquina digital faz hoje em milésimos de segundo. “O computador faz retoque. Mas se não fosse eu ele não fazia. É que nem avião. Só tem esses aviões modernos hoje, porque um dia Santos Dummont teve a habilidade de fazer o primeiro”. Seu João tem razão. Se a máquina parece criativa é porque está imitando o mais criativo dos homens.


Foto de Lilo Novaes (mais fotos www.flickr.com/heroisnossosdecadadia)


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