sábado, 5 de dezembro de 2009

O vendedor de dinheiro


Um velhinho parado na calçada, dinheiros espalhados pelo chão. O trabalhador que não consegue ficar em casa é, na verdade, alguém que sem o alfabeto, resolveu ler a história.



Por Carolina Sotero

Filho de Seu Lisbório e Dona Umbelina, Seu Mariano, aos 83 anos de idade não consegue deixar a rua. Mesmo depois de já ter gastado seus dias de vida trabalhando como cobrador de ônibus, padeiro e operário, não cansou. Há mais de 30 anos decidiu por conta própria ser vendedor de dinheiros. Ele não é bancário, nem faz empréstimos, é apenas um homem que trabalha na rua vendendo moedas e cédulas velhas.

Ele não precisa gritar, fazer promoção, nem cantarolar jingles. O produto que Seu Mariano vende nunca vai voltar a estar na moda. É coisa pra ficar ali, paradinho, esperando algum olho despercebido olhar e quem sabe se apaixonar. Nos casos de amor à primeira vista, os clientes mais comuns são as crianças, mais precisamente garotos entre 5 e 12 anos, colecionadores natos. “Eles passam com os pais, vêem esse dinheiro todo aqui ficam logo com vontade de ter, ai juntam as moedinhas em casa e vêm comprar no outro dia”, conta o ambulante que apesar de ter essa clientela garante que ainda são poucas as crianças que gostam. Os outros clientes que aparecem vez ou outra são os colecionadores. Não precisa nem colecionar notas para chegar ali e começar uma longa série de conversas. Basta gostar de falar em dinheiro e coleção de objetos antigos que Seu Mariano se põe a conversar sobre tudo o que já passou na vida vendendo dinheiro.

Ele ajeita o boné na cabeça, encontra um apoio para o braço, seleciona a melhor história de todas e começa: “Trabalhar com moeda e cédula é um segredo! Tanto faz a gente ganhar 1 real como ganhar mil. Uma vez eu tinha uma moeda aqui que vendi pra um rapaz. Era uma moeda de cobre, de 1757, da época do Brasil Colônia. Eu vendi ela por 3 reais. Depois de uns meses o mesmo cara veio me vender a mesma moeda, dizendo que era de ouro e me oferecendo dois mil reais por ela. Eu sabia que a moeda era a minha, fiquei com tanta raiva que disse a ele que dava cinqüenta pra ele nunca mais aparecer na minha frente”. Depois de ter pago o valor e confirmado com especialista que a moeda não valia toda aquela quantia, o vendedor recebeu em casa uma intimação da justiça. O antigo comprador havia colocado o caso nas pequenas causas, alegando que Seu Mariano devia a ele 300 reais pela moeda. “Eu disse ao juiz: ‘Trabalho há mais de 30 anos com dinheiro e minha ficha é limpa!’ ”, continua o vendedor que ama uma velha história. O final do caso foi simples: quem é colecionador de moedas geralmente possui um documento de registro e o rapaz não possuía documentação nenhuma. O juiz deu causa ganha ao ambulante que já chegou a faturar 500 reais vendendo boas peças para colecionadores. Mas hoje o problema é outro, dessa vez com a prefeitura da cidade.

É que Seu Mariano antes tinha uma carroça. Trabalhava melhor assim, arrumava seus produtos em cima dela, e sob as duas rodas tinha um apoio melhor para o tímido comércio. Contudo, depois da reforma da Praça do Derby, que há mais de 10 anos escolheu para ser seu ponto, agentes da prefeitura levaram seu instrumento de trabalho. “Era meu único patrimônio, aquela carroça foi 800 reais. Mas eu estou correndo atrás dela, ainda vou ter ela de volta”. Enquanto ela não vem, Seu Mariano vem de São Lourenço da Mata, onde mora, com uma maleta velha. Ali dentro está a sua riqueza e a memória do Brasil. Notas de dez mil cruzeiros, cinco mil cruzados, quarenta réis e mais de 50 moedas com datas mais antigas que a soma de todas elas. Toda semana, de segunda à sexta, Seu Mariano prefere ser vendedor de rua a ser um velho morrendo em casa. Mesmo já sendo aposentado, insiste no emprego que criou para si mesmo porque “os trocadinhos sempre servem para alguma coisa, né?”.

A disposição do aposentado é de dar inveja. Ele passa quase toda a parte do dia em pé e debaixo de sol. Mas também confessa que estar na rua não é coisa fácil. Às vezes, vem a fome e não tem dinheiro, passa sede, quer ir pra casa e não pode voltar. Apesar disso, trabalhar é coisa que Seu Mariano gosta de fazer. E esse foi o jeito que criou para aumentar o número de dinheiros que tem em casa e não passar necessidades, trocando dinheiro por dinheiro.

Ninguém nem imagina, mas o filho de um fumeiro de Nazaré da Mata não sabe nem ler. Não conheceu até hoje o bê-á-bá, mas fez das notas velhas seu livro de história. Com elas, aprendeu muito sobre o governo e a economia do seu país. Só de ver uma assinatura na cédula sabe quem foi o Ministro e o ano em que exerceu o mandato. E mais. Ainda confirma se o dinheiro poderia ser trocado ou não no banco. Explica bem quem foi o presidente da época e quanto tempo ficou no governo. Um conhecimento raro, que não se resume só ao passado. Sobre nosso atual chefe de Estado, ele não deixa de exprimir sua opinião: “eu gosto do presidente Lula, mas ele não tem ajudado muito minha classe [a dos aposentados]”.

E foi assim que Seu Mariano aprendeu a ler, não as frases, mas a história do Brasil. Ele vai juntando na cabeça, as imagens, as figuras da letras e tudo que já viveu nas suas oito décadas de existência e vem como um raio na cabeça, a reposta pra qualquer pergunta.



Foto de Armando Artoni (mais fotos www.flickr.com/heroisnossosdecadadia)

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