terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Os homens sem rosto da cidade


Escondidos atrás de fardas amarelas, laranjas ou vermelhas os garis estão nas ruas, limpando todos os dias um lugar onde, eles mesmos, são desconhecido.


Por Carolina Sotero

Nove e quarenta da manhã. Domingo, Rua Souto Filho vazia. Poucos carros passam na Avenida Conselheiro Aguiar e na Avenida Boa Viagem, as mais próximas e movimentadas do bairro. Não há barulhos. Só o som de uma vassoura varrendo a cidade que ainda dorme. Hoje é o dia de acordar mais tarde. Apesar de uma madrugada de festas, que copos e garrafas no chão não podem negar, a manhã está calma no bairro onde estão reunidos boa parte dos bares, restaurantes e melhores apartamentos da Região Metropolitana do Recife. Mas essa calmaria não vai demorar, porque domingo também é dia de praia. A vassoura que já varreu toda a Rua Capitão Ribelinho e agora está ali é a vassoura de Maurício Francisco da Silva. Um pernambucano de 35 anos, que ontem não foi para um bar e hoje não vai à praia com a família. Isso porque ele ainda tem que varrer as ruas Ribeiro de Brito, Ondina, Pereira da Costa, Viscência, Atlântida, Amazônia, Antônio de Goes e Jeremias de Bastos.

Maurício tem olhar tímido, quieto, parece guardar dentro dessas janelas todos os sofrimentos que os poucos dias de vida já lhe permitiram sofrer. Na hora de falar abre a boca o mínimo que pode, fala pouco e baixo. Há mais de 12 anos ganha a vida varrendo a cidade. Já trabalhou em usina e em construção, mas foi como gari que a carteira de trabalho ganhou a quarta assinatura. Ele nem desconfia, mas o nome da sua profissão é em homenagem a Aleixo Gary, um francês que atuou no Brasil no século 19 como responsável pela limpeza urbana na cidade do Rio de Janeiro.

Hoje, mais de cem anos depois, o Brasil, apesar de não ser referência em limpeza e saneamento, possui cerca de 30 empresas de limpeza urbana. E estima-se que no país mais de 50 mil homens e mulheres têm como oficio a responsabilidade de manter ruas e avenidas limpas. Só em Recife, a empresa de limpeza urbana que presta os serviços à Prefeitura da cidade possui mais de cinco mil profissionais que se dividem nas áreas de coleta, varrição e capinação.

O dia a dia desses cinco mil homens começa, geralmente, às quatro da manhã. Acordar cedo é imprescindível para trabalhadores que, como Maurício, demoram mais de uma hora para chegar ao trabalho. A cidade ainda está fria quando eles chegam ao alojamento. Por saber que o resto do dia vai ser longo, o sol parece dar um descanso pelo menos nessa hora. Boa parte chega de bicicleta, outros vêm de ônibus. Alguns de moto. Só aqueles que moram perto é que vem a pé e já com a farda de trabalho. Mas a maioria vem mesmo com sua roupa para depois fazer a troca nos banheiros do alojamento.

Depois de bater o ponto e receber os sacos para colocar nos carrinhos, eles saem. Cada um para sua área. Maurício trabalha em dupla. Seu colega começa juntando o lixo, enquanto ele passa atrás recolhendo. Depois de algum tempo, eles trocam as funções e assim vão debaixo de um sol escaldante. As fardas dos garis são de pano grosso, o que aumenta o calor. E não deixa a sede demorar a chegar. É preciso parar em algum lugar para pedir água. Às vezes, o varredor esquece a garrafinha que sempre traz de casa, então alguém tem que lhe conceder, além da água, um copo. Para ir ao banheiro, é a mesma dificuldade. Ele conta que já tem alguns lugares conhecidos para pedir, um fiteiro, um bar. Mas pedir na casa de moradores nem sempre é fácil, as pessoas não costumam atender com bons olhos. Sem contar que não é possível fazer isso em prédios e condomínios.

São 12 horas, Maurício e seu companheiro já varreram cinco ruas. Eles passaram na frente de muitas paradas de ônibus, casas, edifícios, lojas e portas de escolas. Transitaram por muitas pessoas, desviaram de algumas delas, mas até agora nenhum “bom dia” foi dito aos varredores. A tarde está chegando e além do dono do fiteiro e do vendedor de água, que são colegas, ninguém sequer mostrou atitudes que demonstrassem algum tipo de atenção aos garis. Por que será que as pessoas hoje não enxergaram e nem falaram com ele? “É porque a gente trabalha com lixo. Eles acham que negócio de lixo não presta”, fala o gari, que se diz acostumado.

Maria Eduarda Benevides, estudante, tem 22 anos e foi uma das pessoas que, além de passar por Maurício, foi beneficiada com seu trabalho. Ela mora em um dos bairros que ele trabalha e anda todos os dias pelas ruas que ele mesmo varre. Questionada se tem o costume de cumprimentar esses trabalhadores, ela diz que não. Não sabe responder o porquê. Nunca parou para pensar nisso. Mas arrisca uma resposta: “hoje em dia, a gente só fala com quem conhece, é difícil cumprimentar pessoas na rua”.

Enquanto, na maioria das profissões, o ambiente de trabalho é repleto de rostos que serão vistos todos os dias, no caso do gari é diferente. Por mais que limpem a mesma área diariamente, eles estão na rua, nas veias sanguíneas da cidade. Ali ninguém para. E esse é um dos fatores agravantes da invisibilidade: nenhuma pessoa na sua rotina vai parar para dar atenção ao passar por um simples trabalhador de vassoura na mão. Apesar da avalanche de produtos tecnológicos voltados à comunicação, os contatos, e os diálogos entre os indivíduos que se encontram no dia a dia parecem diminuir cada vez mais. Especial – e ironicamente – no caso de pessoas que trabalham servindo outras. No caso desses labutadores, só restam para sua companhia os plásticos, os restos de comida, as folhas secas. Tudo aquilo que ninguém quer mais e até as arvores rejeitaram fazem parte da sua silenciosa e fatigante rotina.

Wellington Francisco trabalha no caminhão, como coletor, em Brasília Teimosa. Além de se sentir invisível, ele lembra que muita gente quando está perto dele chega a virar o rosto. “Eles botam a mão no nariz, viram. A gente se sente mal. Ficam dizendo que a gente fede a carniça”, diz. Nivaldo Bezerra concorda que a maior dificuldade é ter que lidar com as pessoas. Aos 42 anos de idade, ele conta que diversas vezes varreu um lugar e seu trabalho foi desfeito. Na mesma hora, uma pessoa jogou lixo no chão, apesar da lixeira estar por perto. “O povo na rua não trata a gente como uma pessoa normal. Suja a rua na nossa frente e ainda diz ‘eu pago meu imposto, você trabalha pra mim’”, conta.

Para Fátima Santos, Doutora em Psicologia Social e Professora da Universidade Federal de Pernambuco, esses trabalhadores realmente sofrem uma grande desvalorização e há um motivo para isso: “Em uma sociedade com grandes disparidades sociais, onde quem tem mais poder não quer perder, é melhor não enxergar as pessoas que estão sendo excluídas. Na hora que eu tenho uma relação de dominação com o outro é melhor que eu desumanize ele, porque caso contrário eu posso pensar na situação da pessoa, haver uma sensibilidade e abalar essa relação”.

Essa também foi uma das conclusões que Fernando Braga da Costa, autor do livro Homens Invisíveis – relato de uma humilhação social, chegou quando viveu a experiência de trabalhar como gari por 11 anos. Na época da graduação, o Mestre em Psicologia Social vestiu a roupa de varredor e sentiu na pele o que é sofrer com a invisibilidade - teve a surpresa de não ter sido reconhecido nem pelos colegas de faculdade enquanto estava fardado. Viu pessoas que esbarraram em um gari e não pediram desculpa, de motoristas que dirigiam em alta velocidade e que pouco se importavam com o trabalhador que estava na calçada varrendo. Toda a experiência vivida provou para ele que, quando estão fardados, esses homens são tratados como “coisas”, não como pessoas.

A jornada de trabalho de um gari consiste em 8 horas de trabalho em pé e cerca de 9.600 varridas diariamente. No caso dos garis de coleta, o esforço físico é ainda maior, levando em consideração o peso na hora de carregar os sacos de lixos, as corridas e caminhadas em direção ao caminhão, que resultam em cerca de 4 km. Para esta categoria, a empresa garante 40% de valor adicional ao salário, relativo aos riscos de acidentes. Já para os que trabalham na área de capinação, a primeira e mais baixa do grupo, apesar de atuarem nas cidades o trabalho é de campo. Usar a enxada, o garfo, e a peixeira garante sempre calos nas mãos e dores na coluna no fim do dia.

Maurício fala que, apesar de tudo, gosta do que faz. “É melhor do que ficar desempregado”. Mas é sincero ao dizer que não quer que os filhos sigam a carreira do pai. Quando pergunto se tem vontade de ser outra coisa, ele silencia. Mas o olhar não para quieto dentro dos olhos, esconde algum segredo. Minutos depois da entrevista ele volta, encosta a mão direita no meu ombro, aproveita que os colegas foram embora, e diz: “Queria mesmo era ser músico”. Agora sem gravador e com ninguém por perto, ele conta que tinha um teclado em casa, que tocava para ele mesmo. Devia ser daquele tipo de gente que quando canta vê platéia, vê o palco, vê as câmeras e se sente bem. Sente-se, pelo menos, valorizado.


Foto de Armando Artoni (mais fotos www.flickr.com/heroisnossosdecadadia)

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