Por Carolina Sotero
Enquanto Maurício, Cícero e todos seus colegas de trabalho passam oito horas na rua, trabalhando, o oficio de Dona Marinete é exercido dentro de uma casa. Na maioria das vezes, muito mais do que dez horas por dia. Sua profissão? Empregada doméstica. Sua infância conta uma história comum. Nascida em Ingá de Bacamarte, sertão da Paraíba, e filha de mãe abandonada pelo marido, Dona Marinete cresceu na companhia de 10 irmãos. A falta de chuva e a fome levou toda a família a se mudar para um Engenho no interior de Pernambuco. Aos 13 anos já trabalhava feito homem - limpando e plantando cana. Mas foi observando mulheres terminando a vida em uma plantação, que decidiu o tipo de futuro não queria. Então começou a trabalhar em casa de família.
Marinete Laurentino da Silva, como consta na sua certidão de nascimento, logo casou. Teve sete filhos e não demorou a ficar viúva. Seguindo conselhos de amigas, veio trabalhar no Recife. Os filhos ficavam com a mãe, enquanto ela trabalhava e dormia fora. “Eu só ia pra casa no fim do mês. Tirava um sábado para ir e voltava na segunda. É muito pesaroso pra gente se separar dos filhos. Mas me achava obrigada, não tinha alternativa. Então eu preferi a casa dos outros a minha, porque pensava num futuro para frente”, conta.
A jornada de trabalho começava cedo. Às cinco da manhã, para preparar o café: “E às três da tarde já tinha que estar pronta, com tudo que é de panela lavada, cozinha arrumada, pra ir pra praça brincar com as crianças. Era trabalhar pra largar o coro, porque eu só ia dormir lá pras onze horas”. Hoje, aos 64 anos de idade e com muita história vivida, conta que sofreu muito trabalhando na casa dos outros. As memórias que Dona Netinha, como é chamada onde mora, guarda são muitas. Já teve muitas patroas ruins. Mas também teve o privilégio de ter patroas amigas. Amizades, que até hoje disparidades sociais não conseguiram impedir.
A vida de Marlene Batista, não é muito diferente. Aos 31 anos, a mineira que já tem jeito de pernambucana, começou a trabalhar na casa de um casal de senhores no bairro de Piedade. Tudo começou aparentemente bem, “até que um dia a vassoura que eu usava quebrou”. Como era ela que sempre comprava os remédios da casa, pediu ao patrão para usar o troco na compra de uma nova vassoura. Idéia permitida, vassoura comprada. Quando soube da iniciativa da doméstica, a dona da casa, dona Cecília, não deixou o caso passar. Bateu na mesa e aos gritos começou a falar coisas do tipo “quem é você pra fazer isso?”, “você não faz nada que preste!”, “tudo que você faz quem manda aqui sou eu!”. Mesmo depois dos berros, a empregada não foi demitida.
A volta para casa depois de um dia de conflito era regado de muitos choros. Ela pensou muitas vezes em desistir, mas acabou ficando e, como sempre, apelou pelo silêncio como forma de defesa. “Dona Cecília era muito exigente, sempre quis tudo perfeito e implicava muito. Mas na época eu estava separada e com duas filhas para criar, não podia ir embora”, conta Marlene, que não desistiu e por ficar na casa acabou descobrindo o motivo de tanta agressão. “Era doença”, lembra. Foi depois de anos de trabalho que soube, pela família, que a dona da casa estava com Alzheimer.
Com o passar dos anos, a doença vinha evoluindo e, sem saber, Marlene estava sendo um dos sacos de pancadas. Mas o futuro surpreendeu doméstica e patroa. Hoje, com a velhice prejudicando a saúde e a doença avançada, Dona Cecília que antes trabalhava e tocava violino, não tem mais vontade para nada e as lembranças dos 78 anos de vida se perderam. Como a família mora em outro estado, a companhia agora é Marlene. A empregada hoje é chamada de “comadre” pela patroa. E vez ou outra a dona, num relance da doença, chama Marlene, diz que vai colocar ela para dormir e canta, como se fosse para um filho.
Ela aceita a proposta, deita, ouve a música. Mas depois diz que já está na hora de levantar, que ela precisa tomar banho e comer. Na brincadeira a patroa é a mãe, mas na vida real é Marlene quem cuida da senhora que voltou a ser criança. “Houve um tempo que ela teve muita dificuldade para dormir, então eu vinha dormir aqui. Era a madrugada toda distraindo ela, levava para assistir televisão, ficava fazendo as unhas”, lembra. Mas ainda assim não é fácil, algumas vezes Dona Cecília se esquece de Marlene, dá ordens sem motivo e tudo isso tem que ser resolvido com muita paciência.
Paciência, na verdade, deveria ser o sobrenome de Marlene. Quando tinha 14 anos, a mineira pediu a mãe para trabalhar em um asilo. “Eu tinha vontade de cuidar dos velhinhos”, lembra rindo de si mesma. Quando ficou adulta descobriu que existia a Psicologia e sonhou em fazer uma faculdade. Mas tinha que ser essa, porque a cabeça de Marlene vive tentando entender as pessoas. E na maioria das vezes consegue. Dotada de calma, ela entendeu a luta do marido de Dona Cecília e preferiu há seis anos ficar cuidando da patroa a aceitar ofertas de outras casas. Foi depois que soube da doença que, também, percebeu sua importância na casa e a vida da família. Agora, ela continua aprendendo, dessa vez como o ser humano depende eternamente um do outro.
Marinete e Marlene não são as únicas mulheres nessa trajetória de vida e trabalho. Fazem parte de um grupo de mais de seis milhões de brasileiras que têm que ser mulher, pelo menos, três vezes mais. Cuidar da casa dos outros, dos filhos dos outros, da sua própria casa, dos seus filhos e conciliar todos esses deveres não é nada fácil. E, em alguns casos, acaba até fazendo com que a doméstica negue seu lar para assumir a casa e a família da patroa.
Para a Professora Doutora Maria Bethânia Ávila, no Brasil, desde o período escravocrata, o serviço doméstico é o tipo de atividade que não tem sido feita pelas donas de casa de classe média e alta de nossa sociedade. Apesar de ser assunto contemporâneo o fato de mulheres casadas e bem de vida dedicarem mais tempo ao trabalho do que à própria família, essa espécie de abandono de lar sempre esteve presente da história. E é exatamente aí que as domésticas surgem.
Mesmo estando em casa, as sinhazinhas do século XIX contavam, como diz Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, com mucamas, amas-de-leite, mães-pretas e toda sorte de criadas para ajudar na educação dos filhos. Embora fosse mais honesto dizer que as negras é que contavam com a pouca ajuda das patroas e não o contrário. Os deveres primordiais de uma mãe, como colocar o filho para dormir, dar banho, ensinar as primeiras palavras e até mesmo o ato da amamentação eram feitos pelas mucamas. E é baseado nisso que Freyre, com razão, defende que toda a história social do Brasil foi construída, na verdade, pelas negras dos grandes sobrados e casas de engenho.
O serviço doméstico sempre foi um trabalho exercido, em sua maioria, por mulheres. Herança escravocrata, o trabalho existe há tanto tempo que já pode ser considerado uma instituição social brasileira. A mucama de ontem, já se sabe, é a doméstica de hoje que esteve durante séculos mais do que presente na história das famílias brasileiras. “É um ciclo que vem se repetindo. No século 18, as escravas faziam o trabalho doméstico, já no século 19, sem escravidão, as meninas pobres eram incorporadas às famílias para ocupar esse lugar, mas ainda sem remuneração e sem nenhum esquema burocrático definido”, esclarece o Mestre e Professor de História Social da UFPE, Luciano Cerqueira. Especialista em Estudos Históricos, ele também lembra que o oficio doméstico demorou séculos para ser regularizado.
Para Ianira Marques, a regularização não teve tanta importância. A baiana de Nazaré das Farinhas, quando tinha 14 anos sentiu que precisava trabalhar. Então saiu procurando alguma casa que precisasse ser limpa à troco de alguns trocados. Primeiro achou uma que pagava cinco cruzeiros. Depois outra que pagava quinze. A menina que não era besta, optou pela segunda. Mas não sabia ela que nessa casa ganharia muito mais do que cruzeiros.
A dona de casa que estava disposta à pagar mais do que o dobro pelo trabalho, era Beatriz Pires. Pernambucana, estava na Bahia construindo a vida com o marido e precisava de alguém para ajudar nas tarefas domésticas. “No começo era só para passar uns dias, ai fui ficando, fui ficando, fui ficando”, conta Ianira aos risos. De menina passou a ser mulher, e tudo isso na casa da família Pires. Foram oito anos trabalhando para eles, dormindo na casa e ajudando na educação de Andrea, primeira filha do casal. “Foi depois que a empresa do meu marido faliu que a gente decidiu voltar para Recife”, lembra Dona Beatriz. Mas antes de qualquer despedida, Ianira que se apegou tanto, já tinha decidido que sem eles não ficava mais. Avisou aos patrões e fez, junto com eles, as malas. E foi assim que essa baiana de ser sorriso largo, mas tímido, veio parar no Recife.
Na capital pernambucana, viu Junior e Danielle – os últimos filhos – nascerem e é figura presente na vida dos dois. Chamada carinhosamente de “Ia”, foi com ela que os dois foram criados enquanto a mãe ia trabalhar para tentar suster a casa. No entanto, há pouco mais de 20 anos atrás, os termos patroa e empregada foram excluídos na vida de Dona Beatriz e Ianira. Sem mais condições de manter um ajudante, a doméstica foi avisada de que aquela casa não poderia mais ter uma empregada. Ela então, ficava livre para ir para onde quisesse. A escolha mais uma vez foi feita: a de não deixar a família.
Ianira foi além de uma ajudante nas tarefas domésticas para Dona Beatriz e muito mais do que uma babá para Junior. Hoje, Ianira é da família e a família é de Ianira. E se há um verbo que combine com ela, é “cuidar”. Porque isso é uma das coisas que faz de melhor. Depois ter cuidado dos filhos, foi ela quem cuidou do pai e da mãe da ex-patroa até os últimos dias de vida deles. Hoje, aos 51 anos, ela entende que essa família na verdade foi um presente. “Dona Beatriz é mais chegada do que minha própria irmã de sangue e Junior e Danielle são como se fossem meus filhos”, diz. Com os vínculos trabalhistas totalmente quebrados, sua história é um exemplo dentre tantas mulheres que silenciosamente estiveram presentes na história do Brasil. E que em nome do afeto dedicaram a própria vida em cuidado dos outros.
Foto de Lilo Novaes (mais fotos www.flickr.com/heroisnossosdecadadia)
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