segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Nossas ruas são habitadas por heróis

Mas quem viu?

Por Carolina Sotero


Quem você chamaria de herói? Naturalmente, quem, de alguma forma, lhe chamasse a atenção. Somos levados a intitular heróis aqueles seres fora do normal, que nos roubam suspiros ou nos trazem algum tipo de salvação. Essa visão do heroísmo que mata, faz retaliações e no final é o grande vencedor, quando transferida para nossa realidade mostra que ainda estamos longe de perceber o significado autêntico desse termo tão comum.

As características que, segundo o mitólogo Joseph Campbell, aparecem amarradas às narrativas sobre heróis, na verdade, não possuem nada de tão excepcional. Muito pelo contrário, as trajetórias os tornam tão parecidos com os seres humanos que permite comparações, no mínimo, interessantes.
No livro O Herói de Mil Faces, Campbell fala que todo herói possui uma jornada, marcada por uma saída e um retorno, podendo ser sintetizada também como uma missão. Tal encargo torna-se um desafio para o herói, que passa por aventura e certas resistências exigindo dele um poder descomunal.

Não é muito diferente. Desde o nascimento o homem carrega nos ombros o direito e o dever de sobreviver. Essa é uma de suas missões: salvar-se da morte sempre tão iminente. E é em busca dela que se torna trabalhador. Correndo atrás de um ofício que possa ser trocado por dinheiro – sinônimo de sobrevivência – descobre alguma ocupação, e nela passa a viver sua jornada diária. Assim como os heróis atemporais, é de forma misteriosa que muitos trabalhadores superam as dificuldades e surgem com alguma vitória nas mãos.

“Mas nos dias atuais, devido a nossa cultura que é tão materialista, a imagem heróica está mais nas pessoas que têm sucesso financeiro e que possuem, de alguma maneira, o poder nas mãos”, diz a antropóloga Cida Nogueira. Ou seja, aquele que conseguiu escalar a pirâmide social e lá reservar seu espaço de destaque, é hoje o protagonista da narrativa da vida real, a pessoa de sucesso, o padrão típico de quem quer “vencer na vida”.

Martha Andrade, especialista em Psicologia Social, acredita que hoje lidamos com dois problemas sociais. “O primeiro é que, no Brasil, se valoriza mais as pessoas que possuem status e o segundo é o invidualismo que, cada vez mais, distancia as pessoas”, explica. Os olhos estão olhando tanto para si mesmos, que esquecem muitas vezes de ver os outros, não percebendo aquilo que vive a volta. O fato é que, na aparência do banal, as pessoas existem. Andando pelas ruas, escondidas sob a sombra do que chamamos de “comum”, elas vêm fazendo seu destino, desenhando suas histórias e matando um leão por dia.

Quem um dia abriu os olhos e viu o que quase ninguém vê foi Will Einser. O cartunista norte-americano, quando era criança morou em cortiços na Nova York da década de 20 e viu correr diante de si a vida de gente comum. Desde então nunca mais se curou do vício de observar pessoas. Depois de ter crescido, junto com o número de habitantes da metrópole, passou a analisar a invisibilidade em cidades superpovoadas e transferiu para sua arte seu modo de perceber o outro. O vício havia preservado Einser da indiferença.

Em “Pessoas invisíveis” uma de suas novelas-gráficas mais conhecidas, ele preferiu contar sobre a vida de três personagens tipicamente cotidianos, à falar dos super-heróis unidimensionais. Embora os protagonistas sejam um alfaiate, um mendigo e uma bibliotecária, eles podem ser considerados heróis, por que, à seu modo, possuem forças superiores como escapatória para a sobrevivência em uma sociedade tão excluidora. A obra de Einser revela, mais do que sua maneira revolucionária de olhar, mas um peculiar dom de exprimir o que vê através de desenhos e cores.

Olhe mais de perto. O que você vê? Não é apenas um homem de farda amarela e vassoura na mão que anda entre os lixos. É um pai de família que trabalha oito horas por dia de pé, vencendo os limites do corpo. Ele sai todo dia de casa, rumo a uma jornada. Não faltam dificuldades e resistências no caminho, mas ele arrumou um jeito misterioso de vencer e sempre volta para casa. Olhe mais uma vez e veja que o sorriso da parteira, apesar de tanto tempo, ainda não saiu da boca. Foi quando descobriu que tinha uma missão para realizar que correu rumo a ela, decidindo nunca mais deixar de trazer gente ao mundo. E desse dia em diante a satisfação ficou estampada no rosto.

Mas não se assuste se um dia você vir o alfaiate carrancudo, sem querer muita conversa. É que a vida moldou no trabalhador personalidade forte e a solidão o faz ficar sem paciência, sem vontade para nada. Onde todos são humanos, não existe ninguém comum. O que existe é gente cheia de defeitos, qualidades, conquistas e limites, como todo herói, que humano e divino ao mesmo tempo, oscilam entre fraquezas e superações. Ouse descobrir que as ruas estão cheias deles.

Foto de Armando Artoni
(mais fotos www.flickr.com/heroisnossosdecadadia)

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