sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A gaúcha da manga e suas histórias

Gente comum, uma vida de desafios. Histórias de novela, na feira. Não estão à venda, elas são contadas de graça ao passo de uma conversa.


Por Carolina Sotero



Conversar não é só falar.
É abrir tempo, espaço e ouvidos para o outro. Mas quem não tem tempo, raramente dá espaço. E quem não dá espaço não senta, não puxa uma cadeira, nem um papo. Há algum tempo atrás, o povo abria mais a boca. Contudo, a sociedade que vive enfrentando mudanças, cada vez mais tem se tornado individualista. A verdade é que, por deixarmos de conversar com as pessoas ao nosso redor, diminuímos possibilidades de conhecer histórias inspiradoras. Guacira Rodrigues é um ótimo exemplo. Quem a vê vendendo manga e goiaba na feira de Cavaleiro, município de Jaboatão, não imagina as surpresas que a sua história nos conta.

É difícil acreditar, mas Guacira é jornalista, formada em Comunicação Social e fala oito línguas. Sua história começou cedo. Aos 17 anos, a artesã e feirante deu início a faculdade de Direito, em Bajé, interior do Rio Grande do Sul. Era quase fim da ditadura militar brasileira. O país começava a dar pistas de mudanças e os partidos políticos a se articular. Nesse tempo, começou a participar do movimento do Partido Comunista do Brasil. O engajamento foi tão grande, que a jovem gaucha passou a morar no Rio de Janeiro, para trabalhar em jornais revolucionários do partido. Apesar das promissoras aberturas políticas da época, a realidade era outra. Muitos militares continuavam organizando repressões, até mesmo às escondidas. Entre uma e outra coerção, Guacira e mais alguns estudantes foram torturados, presos e, além disso, abandonados na Argentina. Sem nenhum documento e dinheiro, foi só depois de algum tempo que conseguiram ajuda com o Consulado Cubano.

Protegidos pelo governo cubano, foram exilados em Cuba. “Lá eu trabalhei em rádios, fiz minha faculdade de Jornalismo, morávamos numa república com estudantes de vários países, foi um tempo maravilhoso. Só dois anos depois, que o governo brasileiro mandou que eu voltasse para o Brasil”, conta. Obrigada a morar no Rio Grande do Sul e não mais no Rio de Janeiro, tinha todo ano que se apresentar no exército. Obrigações que trouxeram surpresas. Foi no batalhão militar que acabou conhecendo aquele que seria seu primeiro namorado e marido até hoje. Jerson Malmann, sargento, com quem teve três filhos.

Guacira ainda trabalhou em alguns meios de comunicação antes de se mudar para o Recife. Começar a vida em outro Estado não foi nada fácil. Ela, o marido e os filhos construíram a casa juntos. E depois de ter trabalhado como babá, vendedora, professora e ser demitida de um jornal por corrigir erro de português do editor chefe, tentou arrumar outro emprego. No entanto, não conseguiu. Apesar das experiências, o diploma não foi aceito no Brasil. “Era como se eu não tivesse nenhuma formação e a cada ano que passava as empresas iam requerendo mais formação acadêmica. Então, fui perdendo meu espaço no mercado de trabalho”, explica.

Foi em casa que Guacira, uma mulher de formas arrendondas que não para quieta, teve a idéia de colher os frutos da mangueira do quintal para vender. Hoje, aos 42 anos, ela tem sua casa construída na reserva do quartel militar e rodeada de muito verde. Nunca faltou matéria-prima para o trabalho. Aos poucos, foi conquistando seus fregueses, seu espaço, não em uma redação de jornal, mas na feira de Cavaleiro. Quando tem alguma crise de convulsão ou cansaço, ela fica em casa fazendo artesanato e manda os filhos ou cunhado no seu lugar.

Apaixonada por velhos e crianças, ela diz que, apesar de tudo gosta de estar na feira, porque lida com pessoas. “Eu tenho uma freguesa que tem uma vida triste, ninguém dá atenção a ela. É a sofrenilda, então quando ela chega, eu abraço, a gente conversa, eu escuto ela. Gosto de fazer isso. Trato todo mundo bem”, fala. Não são só seus clientes que são bem tratados. Um dia, Guacira levou um mapa do Brasil para a feira. Era para mostrar aos amigos onde nasceu. “Eles pensavam que o Rio Grande do Sul era um país, então fui lá, mostrei e expliquei”. Refletindo sobre o tamanho do nosso país, ela conclui: “é um Brasil de muitos brasis mesmo!”.


Atrás da banca, cheia de simpatia, ela explica, para quem chegar ali, porque comer frutas faz bem. Fala como uma boa alimentação inibe doenças e pode, até mesmo, substituir remédios. A vendedora fala com propriedade, pois já acompanhou uma luta contra a anemia, à base de alimentação. E viu vitória. Mas antes de falar desse triunfo à base das frutas é preciso falar de quem a venceu. Foi Diego Rodrigues, seu terceiro filho adotivo, Guacira é mãe no total de sete filhos.

“Ele morava na rua e sempre vinha me pedir uma goiaba ou resto de fruta pra comer, era magrinho. Até que um dia, um pessoal lá na feira fez uma brincadeira de mau gosto. Embebedaram Diego e ele começou a ter convulsões no meio da rua”, relembra. Ela mesma carregou o menino e o levou para o hospital. Era uma forte anemia. Devido à má alimentação o garoto já estava no último nível da doença. Não demorou e Guacira adotou Diego, que seis meses depois de muita fruta e verdura estava curado e já podia ser chamado de “seu filho”. Diego é o mais sensível e amoroso dos filhos. “Ele gosta de preparar meu café da manhã e levar na cama”. Por causa de problemas diabéticos, Guacira precisa comer ainda na cama pra evitar câimbras musculares.

E essa é Guacira. A gaúcha que vende manga, a jovem militante dos anos 80, a filha gêmea de uma família distante, uma amante das culturas orientais, a jornalista que não tem vergonha de dizer que é feirante. Uma mulher cheia de histórias. Que está ali, sentada ou de pé, vendendo na feira, na paisagem comum. Era só oferecer um bom dia, abrir os ouvidos e ninguém precisava mais procurar nas novelas da TV uma história tão interessante.

Foto de Armando Artoni (mais fotos www.flickr.com/heroisnossosdecadadia)

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